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O pingente de Veneza
22 de abril de 2014

"De vez em quando, nossa vida é iluminada por alguma coisa ou por alguém. Vemos um clarão de luz e chamamos isso de " Felicidade".

Mil Dias em Veneza - Marlena de Blasi.

Não obstante o afeto que depositamos nas coisas - elas podem perder o viço ou desencontrar o caminho das nossas mãos. Nem tudo o que pensamos que é nosso realmente nos pertence. O valor e a posse podem ludibriar nossos olhos carentes. E terminamos depositando nas “coisas” os valores que inúmeras vezes elas sequer possuem.

Não pretendo com isso dizer que não me afeiçoei durante à vida as cores e as formas de algo nominado através da posse. Há objetos quando denominados de “meu” acabam agregando valores imensuráveis. E com essa valia dotada ou desprovida de virtude somos agraciados com o contrato acessório do medo.

Ao perder aquilo que nos pertence é como se perdêssemos um pouco da nossa história. Ou quem sabe uma pequena porção da nossa alegria. Há em nós uma conjugação interminável de ganhos e perdas. Nem sempre estamos cônscios daquilo que um dia foi nosso e daquilo que por ventura nunca será.

Nossa cadência vital conjuga o ontem e o amanhã naquilo que temos e nem sempre naquilo que somos. Um balé que podemos sorver através dos dedos - quando as alianças não significavam um grande e verdadeiro amor. Nem sempre o que acalenta nossa história é realmente indispensável.

Só podemos dimensionar aquilo que permanece e esses valores estão muito além da nossa capacidade matemática. Ter ou não ter. Ser ou não ser são cadências da nossa reflexão permanente. Mas por certo cada um de nós já intentou construir essa ponte de dúvidas através das posses. Sim.

O que não temos é compensado por aquilo que adquirimos e por vezes sucumbimos ao brilho daquilo que nos afaga o ego. Hoje sinto a minha capacidade de mensurar prejudicada, pois o  pingente verde que eu trouxe de Veneza restou quebrado e com ele nas mãos só consigo vislumbrar os cacos.

Mas me sinto distante. Muito distante da possibilidade de compreender o que está perdido entre aqueles verdes cacos. Alvoroçada pelas minhas angústias revisto cada pedaço daquele pingente e vislumbro o pó esfacelado que parece pulsar diante dos meus olhos. Fico curiosa por examinar em qual parte especial seria dissecada a minha ilusão.

As minhas mãos frias seguravam partes da memória afetiva e da minha lucidez contaminada. Eu contemplava a mim mesma em cada fragmento, pois sentia minha alma bradando em cada partícula dourada  e em cada fino contorno fragmentado do cristal verde eternidade. Eu sentia uma dor quase inconsolável e aguda... Me sentia um Arúspice.

A serpente da ira subia pelas minhas pernas e seu veneno cegava meus olhos e fazia arder o meu peito. Tudo era escasso – o ar, o tempo, a razão e a calma. As carnes fugiam ao meu controle e ao certo eu não compreendia a extensão da minha perda vergôntea. Qual seria o motivo da febre que me consumia?

 

Eu era uma mísera alma comiserada pelo medo. Empalidecida eu me esquivava da verdade. Teria eu perdido algo que conquistei por cobiça. Ou a comiseração do meu afeto estava ali projetada? Não houve descuido, mas uma fatalidade. Rompida na mesa de mármore negra. Roubando para a escuridão o presente que escolhi ter para sempre.

Algumas coisas arrancam do nosso corpo o sangue da vida, mas nesse instante a sombra triste que contorceu meus dedos era a perda de uma lembrança que estará guardada no meu coração volúvel. Mas que ainda podia ser tocada naquele lindo pingente, pois na sua forma arredondada e vigorosa – ele parecia incorruptível enquanto memória táctil...

Bendito pingente que aviltou temores numa alma já tranquila. Surge a dúvida diante das dádivas, pois saberia eu se bastavam as posses já conquistadas ou era necessário domínios desafiadores. A pecúnia aviltada pelo valor. Pouco saiu do bolso na compra, mas uma imensidão se foi com a perda.

Dimensionamos o que pode ser consertado. Por mais que eu cole os pedaços, o estrago não poder ser apagado. Procurei as partes da peça uma por uma. Diante das encontradas não era possível o todo. Um fragmento perdido basta. Diante desse quadro a cicatriz não surge. O que nasce é a impossibilidade.

Podemos perder a calma, mas nunca o coração. A calma pode ser reposta, mas uma vez perdido o coração a vida sucumbe para a eternidade. Adoecido e operado de suas dores ele ganha cicatrizes, mas nada pode faltar para esse congraçamento entre doença e cura. Porém, quando faltar uma parte essencial do coração - seja ela visível ou invisível - estaremos mortos.

  Ramo de árvore; rebento, renovo. Descendentes de pouca idade; prole.

Arúspice era o nome dado aos antigos sacerdotes romanos que adivinhavam o  futuro mediante o exame das entranhas das vítimas.

Taís Martins

Escritora, MsC, e professora.

Contatos: 

taisprof@hotmail.com

  focuslife@playtac.com

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Deixe seu comentário:

  • Tais Martins

    Obrigado Sandra de Cássia Magro... seu carinho é fundamental. bjs

  • Sandra de Cássia Magro

    Senti mais uma vez em seus textos um pouco de mim. Já perdi fotos de uma festa maravilhoso chorei demais e nada a fazer. Eh super difícil aceitar.... minha amiga mais uma vez Maravilhoso. .. e digo mais minha irmã gêmea. Conta toda minhas histórias. Bjo amiga....

  • Raphaella Martins

    Faz tanto tempo que acompanho seus escritos e posso afirmar que você está cada vez melhor. Te amo mãe.!

  • Giuliana Alboneti

    Textos profundos e sinestésicos. Parabéns. Sua escrita evolui cada vez mais...

  • Marcos Castilhos

    Desculpe. Coloquei o seu nome. ou invés do meu. perdoe. repito o comentário. Seus textos são especiais. bjs

  • Tais Martins

    Minha querida. Seus textos são definitivamente inebriantes. Parabéns. bjs