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Sem final feliz
15 de julho de 2013
"Está morto: podemos elogiá-lo à vontade."
Eu adorava aquele menino. Era pobre e muito esforçado. Lembro perfeitamente que ele nunca queria entrar na minha casa. Dizia que era muito diferente da casa dele. De toda sorte eu empreendia um grande esforço para deixá-lo livre. Sentávamos na calçada da minha residência e conversávamos durante algumas horas vagas nos finais de semana.
A primeira vez que nos vimos foi muito singelo. Estava na catequese e ao fim de mais um dos encontros devia voltar para casa. Essas eram as ordens de minha mãe. Mas naquela tarde qualquer de junho de 1991 eu me demorei mais, pois haveria a seleção para a dança da quadrilha. E festa junina em igreja é coisa séria demais.
Fizemos uma fila de meninos e outra de meninas e para minha sorte me deparei com aquele jovem tão simples e cheio de encantos. E com uma ajudinha do destino me tornei o par para treinar até a festa de Santo Antônio e de São João. Eu fiquei muito feliz, pois era chance de ter uma nova amizade, pois ele era novo na comunidade.
Nessa altura da vida meus compromissos estavam centrados nos livros e na igreja. Saía pouco de casa. Afinal os afazeres diários me consumiam. Eu fazia o possível para continuar com os meus pequenos prazeres. Um sorvete no sábado e uma voltinha no domingo. Era sabido que nunca devia estar acompanhada. Mas ter amigos era sempre uma boa perspectiva.
Os treinos da quadrilha sempre no sábado à tarde eram esperados com ansiedade. Afinal me divertia muito. Gostava tanto de dançar, mas eram poucas as oportunidades. E aos poucos ia conhecendo melhor aquele menino com o singelo apelido de Batatinha. Dançava tão mal que ao final dos ensaios meus pés estavam sempre marcados. Mas o sorriso era sincero.
Depois de uns quinze dias de ensaio, ele decidiu me acompanhar até em casa. Fiquei feliz e viemos conversando. Contou da família. Da mudança. Das responsabilidades e da ausência do pai. O que impingia uma tarefa pecuniária pesada para um jovem de tenra idade. Com tantos sonhos pela frente.
Ficava admirada com o seu cuidado com a família. E ele falava do futuro. Dos sonhos universitários. E eu ficava encantada. Afinal enquanto nossos coleguinhas descobriam o álcool e as baladas nós partilhávamos livros e nossos conhecimentos sobre a vida. E já dizia Machado de Assis “aos 15 anos tudo é infinito” e nós nem havíamos chego lá...
A festa junina chegou. Com muito custo à apresentação ficou bacana e a comunidade da igreja elogiou muito. E naquele dia ganhei um lindo correio elegante que trazia um barquinho com palavras que diziam assim: “vamos navegar rumo aos nossos sonhos em busca da felicidade...”. Um encanto de recado e um encanto de menino.
Depois da festa me pediu em namoro, mas, hesitei um pouco. Afinal, éramos amigos e o conhecia tão pouco. Disse que poderíamos nos conhecer melhor e que nos visitaríamos sempre que possível. Sempre gentil e mesmo sem grandes posses sempre me trazia uma flor dos quintais alheios e com simplicidade falava em afeto.
Um dia, porém, numa festa, ao me ver conversando com o namorado da minha amiga Daniele, ele teve um surto e disse que não falaria mais comigo. Fiquei tão aborrecida. Mas a vida seguia. Um dia um pouco arrependido ele veio até minha casa. E sei que o esforço foi imenso. Naquela ocasião meus pais recebiam visitas e a situação foi terrível.
Minha casa estava recém-reformada e não se podia entrar de sapatos nos assoalho novo. E o pobrezinho tirou o sapato já roto exibindo as meias ainda mais rotas e com alguns furos. Ao sentar no sofá escondia os pés embaixo do tapete, mas sem sucesso, pois os amigos dos meus pais de modo nada gentil debocharam da simplicidade do garoto.
O que era uma emenda ruim para um soneto terrível fez com que ele se levantasse e fosse embora magoado. E não nos falamos durante muito tempo. Até que sua irmã mais nova tivesse uma bela filha por nome Patrícia. Uma pequena e linda menina que batizei juntamente com meu querido amigo.
Naquela alegria de convite e de reencontro falamos muito. Ele me contou do sua evolução e que conseguia mais dinheiro com o trabalho novo. Porém, não mais conseguia estudar. Fiquei arrasada com a notícia. Mas a tristeza foi ainda maior quando percebi que ele estava por acender um cigarro.
Repentinamente, não reconheci meu parceiro de dança junina. Mas decidi não repreendê-lo para não afastar a magia da conversa. Porém já éramos tão distantes que a conversa não trouxe a mesma alegria e senti que já não havia em nós a mesma inocência doutros tempos. Mas ainda assim era bom sentir aquele momento.
Antes de partir, ele me disse que chegaria muito longe e que as meias eram mais novas. Fiquei absorvida com o comentário. Pois eu gostava das conversas e não me importava com as roupas puídas. Afinal a alma não estava ainda corroída. Triste saber que quando permitimos que a vaidade seja maior do que nossos sonhos - acabamos mal.
E assim foi. Sem final feliz ele foi encontrado morto dentro de seu carro. Um antigo carro branco que o orgulhava tanto. E sem motivo aparente da causa mortis foi enterrado numa cova rasa quase como indigente. Uns falam em vício. Outros em vingança. Outros em desvio de dinheiro.
Eu, singelamente, imagino que não conseguindo seus auspícios na rapidez desejada. Perdeu o seu tempo e sua vida quando enterrou seus sonhos. Tantas vezes subestimamos o que desejamos na juventude e tão jovem ele perdeu sua fé no amanhã. Creio que suas amarguras sobrepuseram sua força.
Na minha memória, resta aquele bilhete, pois mesmo que ele não esteja no barco dos meus amigos é sempre lembrado. Navego em busca dos meus sonhos e ainda penso como ele poderia ter sido feliz com as conquistas do tempo. Minha amiga dizia que ele tinha pele de pêssego e que parecia um anjo. E assim ele partiu. Sem asas e sem final feliz.
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Taís Martins Escritora, MsC, e professora. Contato: taisprof@hotmail.com focuslife@playtac.com |
Os caminhos da imaginação pela Escrita
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Tais Martins
Estimado(a) Alguém Permita dizer que o tempo é senhor das nossas dores. Mas nós somos senhores de nossas escolhas. Procure um caminho para o seu coração. afinal é sempre tempo de ser feliz. conte com meu abraço. beijos carinhosos.
Denise Maria Mendes
Infelizmente, ainda vemos grandes talentos que por ironia do destino ou, quiça, fatalidade, se perdem em meio a tantos preconceitos e vaidades mas que no apagar das velas permanecem iluminando outras mentes.
Alguém
Emociona-me profundamente a narrativa. Meu grande amor era pobre, muito pobre. Vivia uma vida difÃcil em todos os sentidos. Eu não tinha riquezas, mas tinha algum conforto. Meu amor também foi humilhado pela minha famÃlia. E apesar de hoje viver muito bem, vive com o buraco da ausência que somos um na vida do outro. Mundo terrÃvel que enterra sonhos maravilhosos por causa da quantia em nossos bolsos e da nossa aparência.